terça-feira, 6 de agosto de 2013

Minha Morte, Eu e o Sentido da Vida





Hoje, 07 de agosto, faz 42 anos que vi esse lado da vida pela primeira vez. Tive que deixar outra forma de vida (a uterina), e antes dessa outra, e mais outra até se perder em uma forma de vida informe, numa sucessão de mortes de algumas formas e assunção de outras.





Já se vão 42 anos de anos levados pela morte e agraciados pela vida, afinal, como disse o poeta Mário Quintana:





Minha morte nasceu quando eu nasci...
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao luar amigo
Na pequenina rua em que vivi

Já não tem mais aquele jeito amigo
De rir que, aí de mim, também perdi
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és minha doce prometida,
Nem sei quando serão nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti...saber que tu existes!



Não sei quantos anos ainda tenho de vida, e isso me é indiferente, embora espero que sejam muitos. Só espero que possa vivê-los, não comprometê-los em projetos ou com pessoas que acabem sendo mais importantes do que a minha própria existência. Não quero imperativos para a minha vida. Não quero sentidos para o meu viver. A única coisa que quero é quer viver seja o meu imperativo e o meu sentido.



Essa é a lição que quero aprender com a morte, enquanto vivo, sob esta forma, estiver.




Ayala Gurgel

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Marco Túlio Assis Figueiredo: morreu o pioneiro dos cuidados palitivos no Brasil





A ANCP (Academia nacional de Cuidados Paliativos) comunicou o falecimento de Marco Túlio Assis Figueiredo, pioneiro dos cuidados palitivos no Brasil






INFORMATIVO ANCP


 


 


Faleceu, na madrugada desta quarta-feira, dia 20 de
fevereiro, aos 88 anos, o professor Marco Tullio Assis Figueiredo,
pioneiro dos Cuidados Paliativos no Brasil.


“O professor Marco Tullio influenciou uma geração de
médicos”, disse a Dra. Dalva Yukie Matsumoto, diretora da ANCP. “Ele nos
inspirou e nos acolheu em um momento em que havia muitas dúvidas e
muita angústia sobre a terminalidade da vida. Mostrou a todos nós qual
era o caminho e o caminho era Cuidados Paliativos”.


Em 1948, graduou-se em Medicina pela atual Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez residência médica na Universidade
da Pensilvânia (EUA, 1950-1952) e doutorado em Anatomia Patológica pela
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 1976).


“Ele nos apresentou a filosofia dos Cuidados Paliativos.
Trouxe a percepção de que a assistência na fase final de vida tinha que
ser diferente”, afirmou o Dr. Ricardo Tavares de Carvalho, diretor
científico da ANCP.


Em 2004, participou das reuniões que deram origem à
Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), tornando-se membro
honorário desta entidade. Foi também sócio-fundador da International Association for Hospice and Palliative Care (IAHPC, 1997) e membro de seu conselho consultivo durante três mandatos.


Em 2002, recebeu homenagem do Hospital do Servidor Público
Estadual de São Paulo (HSPE-SP) com a inauguração do Espaço Prof. Marco
Tullio no 12o. andar na Enfermaria de Cuidados Paliativos por iniciativa
de sua coordenadora, Dra. Maria Goretti Sales Maciel. Em 2008, recebeu o
Troféu Averroes no 1o. Ciclo de Cinema e Reflexão, iniciativa do
Hospital Premier, Oboré e Cinemateca Brasileira, e homenagem da
Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC-SP) pelo seu pioneirismo
em Cuidados Paliativos.


Como professor da UNIFESP, organizou as disciplinas
eletivas de Cuidados Paliativos (1998) e Tanatologia (2007). Deixou
inúmeros artigos científicos e ministrou dezenas de palestras e cursos.
Um de seus trabalhos mais conhecidos era a tradução do livro Bilhete de
Plataforma, de Derek Doyle, um dos mais importantes na área.


Atualmente, era professor titular de Tanatologia e Cuidados
Paliativos da Faculdade de Medicina de Itajubá, Minas Gerais e era
casado com a professora Graça Mota Figueiredo.


A ANCP compartilha esse momento de luto com seus amigos e
associados e presta esta homenagem ao Professor Marco Tullio, cujo
trabalho foi fundamental para uma cultura paliativa em nosso país.


Equipe ANCP

domingo, 27 de janeiro de 2013

Luto e Solidariedade pelas vítimas de Santa Maria do Sul



Fomos todos assaltados por uma notícia inesperada, embora venha se tornando comum nos mais diversos ambientes (não só em boates, mas também em igrejas, escolas e residências) e lugares (não são apenas os países periféricos, mas também os capitalistas centrais, da américa à oceania): vidas sendo findadas em decorrência de acidentes perfeitamente evitáveis e causadores de muita dor, sofrimento e comoção.



O caso de Santa Maria do Sul não é único, mas nem por isso não pode ser pensado como se fosse, pois, nesse momento, a morte de cada um é única, a dor de cada amigo, parente, amado e amante é única. Contudo, mesmo sendo única, é coletiva, pois a solidariedade que nos move ao encontro de cada um, de cada uma, é de todos. É da humanidade que há em nós.



As responsabilidades precisam ser apuradas e os culpados punidos. Isso não trará ninguém de volta nem aliviará nenhuma dor, mas, certamente, a impunidade e o descaso continuado aumentará a dor dos enlutados e a geração de novas vítimas. Crimes (isso não foi uma catástrofe) como esse não podem ser tolerados nem passar em vão. Que aprendamos com o sofrimento e a morte de tantas pessoas. E, quem puder ajudar, faça algo. Quem não puder, por favor, não atrapalhe. O povo enlutado, gaúcho ou não, familiares ou desconhecidos, não precisam de piadinhas religiosas, racistas, políticas ou difamatória. Uma sociedade que não respeita os mortos é uma sociedade de abutres.

A comunidade gaúcha convoca a nossa solidariedade: psicólogos, bombeiros, médicos, enfermeiros, assistentes espirituais, assistentes sociais... homens e mulheres de boa vontade que estejam dispostos a ajudar. A simplesmente ajudar. E que saibam fazê-lo, não para a própria promoção, mas para ajudar aos que mais precisam.

Nosso blogue se solidariza com todas as pessoas enlutadas e abomina as piadas de quaisquer ordem contra o sofrimento alheio.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Morte: Desalento e Humanidade (Erasmo Ruiz)









Todo mundo morre. Afirmativa aparentemente banal, se expressa
 como uma das raras verdades absolutas. Ninguém
duvida que morrerá um dia. Aprendemos essa lição desde a mais tenra infância.






Entretanto, saber que morreremos  não parece livrar-nos do temor sobre o que
acontecerá quando morrermos, seja pelas inúmeras possibilidades que se
apresentam (morrer com dor, violentamente, repentinamente, serenamente etc),
como sobre o que virá, ou não, depois que morrermos.  A morte é a senhora do desconhecimento.





Ainda assim, ela parece irmanar os homens pelo que provoca.
Precisamos de rituais para oferecer sentidos a algo que parece não ter sentido,
nas palavras de Goethe, uma impossibilidade que de repente acontece. O vazio
deixado pela morte precisa ser de alguma forma preenchido, nem que
parcialmente, pela fé de que o fim não é absoluto, pelas elegias que divinizam
a vida comum do morto, pelo remoer da memória que afirma ao mundo que aquela
vida valeu a pena ser vivida.





Quando agimos dessa forma, ao que parece, falamos ao mundo
como se olhássemos um espelho na esperança de que farão  mesmo quando partirmos. Talvez a dor maior
não seja a morte do corpo  mas a sensação
de que a lembrança do que  fomos um dia
se perderá no limbo da memória dos que ficam, como no poema de Manuel Bandeira
intitulado “A Morte Absoluta”, que no final depois de tantas mortes da
identidade do morto se interroga sobre o nome que o tempo apagou de um túmulo.





A morte nos solidariza com todos. É nessa dor meio sem nome,
mas que todos parecem ser capazes de sentir,  que podemos trilhar mais facilmente os elos
que ligam nossa humanidade a humanidade de outros homens. Nesse momento milhões
de seres humanos sofrem intensamente inúmeras perdas. A maior parte delas
parece não nos dizer respeito. Mas basta aproximar um pouco o olhar para nos
percebermos ali, mesmo que estejamos a milhares de quilômetros.





No início do sec. XVII o poeta  John Donne nos avisava que nenhum homem é uma
ilha que se isola em si mesmo. Pelo contrário, ele é parte de um continente.
Caso um pedaço dessa terra seja levado pelo mar, os homens que ficam sentem-se
diminuídos. Por isso afirma que a morte de qualquer homem o diminui porque ele faz
parte do gênero humano. Por isso, “Não perguntes por quem os sinos dobram, eles
dobram por ti.”





Em meios a tantas mortes, essa semana me senti diminuído
pelas tristes imagens do que acontece na Síria, pela morte do publicitário abordado
pela polícia, a criança de dois anos espancada e morta no automóvel pelo
próprio pai, mais alguns moradores de rua 
chacinados por gente que não os percebe como seres humanos e assim agem
como monstros, enfim, em meio a tantas mortes deparei-me com uma imagem que
encarnava o desalento.





Estamos acostumados a ver os atores de cinema como seres
paradoxalmente próximos porém inatingíveis. Inconscientemente nosso psiquismo
se desenvolveu buscando parte dos seus atributos de poder e beleza. Raramente os
percebemos de fato como são, seres humanos por trás dos personagens que
representam.  Assim, ao ver o ator
Sylvester Stallone debruçado por sobre o caixão do filho, não vi Rock muito menos Rambo. Vi um ser humano imerso em profunda dor simbolicamente
beijando o esquife como se beijasse a fronte do filho.





Neste instante, minha alma
diminuiu de tamanho...ficou microscópica e vulnerável. Era eu ali chorando a
intensa dor da perda de um filho. Era eu ali a perguntar sobre o sentido que a
vida tem e porque não havia sido levado no lugar dele. Era eu pensando que
talvez um dia magicamente aquela ruptura pudesse ser recomposta e assim poder
beijar e abraçar o que parecia irremediavelmente perdido.





Os homens estão absortos no movimento intenso da vida. Um
torvelinho demarcado por rotinas e desejos de prazer marcam nossos passos a tal
ponto que nos esquecemos da efemeridade da vida. A morte nos lembra que tudo é
transitório e reveste de amplo sentido o tocar e o amar, o cheirar e o ouvir.
Mesmo que diminuídos, ficamos mais alertas para crescermos diante dos
verdadeiros tesouros que a vida pode proporcionar.


quinta-feira, 19 de abril de 2012

"Entre a Vida e a Morte": Reflexões a Partir de um Documentário da BBC (Erasmo Ruiz)

BETWEEN LIFE AND DEATH

Construir um documentário não é uma tarefa fácil. O primeiro engodo que se pode incorrer é a idéia de que, não sendo uma peça ficcional,o documentário sempre mostraria a "verdade" e, dessa forma, ganha quase de imediato a credibilidade pela forma como "tece" suas imagens. Ora, sabemos das inúmeras mentiras que podem ser urdidas a partir do que se faz numa ilha de edição.Este não é o caso do documentário "Entre a Vida e a Morte" produzido pela BBC.





Nele somos todos levados aos corredores e salas de cirurgia do Hospital de Addenbrooke em Cambridge (Reino Unido), um centro avançado em neurocirurgia e reabilitação. Lá nos deparamos como o drama de três famílias que tiveram seus entes queridos envolvidos em graves acidentes e estão entre a vida e a morte. Duas pessoas conseguirão manter suas vidas mas com grave comprometimento neurológico. Uma irá morrer.



Por 50 minutos adentramos nos dilemas bioéticos produzidos por tecnologias e práticas  que cada vez mais são capazes de manter a vida ao mesmo tempo em que recolocam em novos patamares problemáticas como a autonomia dos pacientes e formas de assistência que podem respeita-la bem como  manejar as problemáticas psicossociais trazidas pelos familiares.



Entre as cenas de vulnerabilidade dos pacientes nos são apresentados vídeos domésticos onde os vemos felizes e saudáveis antes dos acidentes. Dessa forma, somos forçados a nos perguntar de imediato: e se essa pessoa fosse meu irmão, como estaria me comportando? Caso ele estivesse consciente e diante de um quadro de severas perdas e solicitace pela suspensão do tratamento, eu respeitaria sua decisão mesmo que respaldada pelos profissionais de saúde? E seu estivesse nessa situação, desejaria morrer?



Como bem salientou Ayala Gurgel agora a pouco no seu perfil facebook, ao assistir o documentário não há como não pensar no trabalho de profissionais como a Dra Maria Goretti Maciel. Quem sabe um dia o trabalho do Hospital de Adenbrooke seja a norma em saúde. Estaremos então produzindo uma síntese harmônica entre os saberes do passado que hegemonicamente respeitavam a vontade do moribundo junto a todo um complexo arcabouço de conhecimentos colocados  a serviço do exercício dessa autonomia aqui e agora, inclusive como elemento fundamental para superação da vulnerabilidade extrema.



Quando acabamos de assistir ao documentário, entre tantas reflexões parecem ficar duas fortes marcas. A primeira é de que o avanço da ciência cria uma interface "cinza" entre a vida e a morte que parece se ampliar mais e mais, o que exige uma permanente crítica dos critérios utilizados para definir qual seria, caso a caso, a hora de cessar intervenções que ao invés de trazer esperança, a sufoca em meio a dor e sofrimentos desnecessários. A segunda é que havendo qualquer possibilidade para se exercitar a autonomia do paciente, mesmo  em situações onde a comunicação fique muito precarizada,  é um imperativo ético busca-la e prioriza-la.



Abaixo você poderá assistir o documentário diretamente aqui no blog da Thanatos



quinta-feira, 29 de março de 2012

As Frases Mortais de Millôr Fernandes (Erasmo Ruiz)



Ao saber da morte de Millôr Fernandes veio-me imediatamente a ideia de que homens como ele nao morrem, são como os livros que escreve, apenas mudam de página. Eu sei que é um pensamento consolador como tantos outros que temos diante da morte. Mas a arte tem essa espécie de dom, cria uma aura de magia ao afimar a pretensão de que as obras de um grande artista adquiriram o estatuto de “eternidade”. Não tenho dúvida que este é o caso de Millôr Fernandes.


 Apesar deste blog ser sobre a morte, não queria escrever um obtuário de Millôr pois já apareceram muitos, alguns excelentes. Também não proporei discussões em torno de falsas dicotomias: "era Millor um humorista escritor ou um escritor humorista?". Pensei em destacar de Millor o aspecto em que ele era mais genial, suas frases! E já que nesse blog não existe  tabu com relação a morte, o que ele nos dizia sobre ela?


Antes, uma advertência do Millôr: “Fiquem tranquilos os poderosos que tem medo de nós: nenhum humorista atira para matar”. Eu completaria dizendo que, apesar disso, Millôr poderia nos matar de rir. Por exemplo, quando se referia implicitamente sobre a morte ele avisa: “O otimista não sabe o que o espera” já que “o cadáver é que é o produto final. Nós somos apenas a matéria prima.”


De um sarcasmo a toda prova, Millor refletia o tempo todo sobre a vida. Colocou em prática a assertiva dos romanos que já avisavam que rindo satirizamos os costumes. Ah, e como ele nos fazia rir, tendo até nosso maior objeto de temor como combustível para a piada. E “profeticamente” antevendo a própria morte ele dizia que “quando eu morrer só acreditarei na sinceridade de uma homenagem - o agente funerário não cobrar o enterro”.


E ele tinha razão. Sabemos o quanto podemos aumentar de maneira suspeita o que os mortos eram e acrescentar virtudes que nunca tiveram: "A ocasião em que a inteligência do homem mais cresce, sua bondade alcanlça limites insuspeitados e seu caráter uma pureza inimaginável é nas primeiras 24 horas depois de sua morte".


Na vida, segundo Millôr, viramos cópias pois “todo homem nasce origuinal e morre plágio”. E quanta coisa há para se fazer entre esses dois pontos. Millor acreditava em Deus. Mas sua crença era como seu humor, irônica e sarcástica. Em conversa com Deus ele diz: “Sabemos que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?”.


Maldita liberdade essa a qual estamos condenados já que a “morte é compulsória mas a vida não!”. Somos livres para atuar nesse intervalo entre nascer e morrer e todos desejamos por alguma velhice. Ainda assim, para Millôr, existe vantagem em se morrer jovem: “a única vantagem de se morrer moço é que economizamos a velhice”.


Millôr era um mestre do humor fino. Alguém que olhava o cotidiano e era capaz de fazer piada da conversa do liquidificador com o fogão. A piada sempre esteve diante de nós, mas só Millôr era capaz de vê-la. Um exímio jogador das palavras. E diante da morte, ri e nos faz rir ao contatar “que o dedo do destino não tem impressão digital”,


Sigamos então mais uma vez os conselhos dos romanos que nos avisam para aproveitarmos bem o dia até porque, como reforça a maxíma de Millôr , “um dia, mais dia menos dia, acaba o dia-a-dia”.


Finalizando, para aqueles que tem um medo imobilizador da morte, Millôr teria deixado algumas sinalizações que podem ser alentadoras ou, com certeza, revestir a tragédia com alguma graça: “a morte é dramática, o enterro cômico e os parentes ridículos”. Quanto a este escritor de blogs, vou seguindo adiante tentando aproveitar o máximo pois “estou jurado de morte, mas continuo cheio de vida!”.


domingo, 25 de março de 2012

Chico Anysio: a autonomia e a distanásia (Ayala Gurgel)



"Eu não tenho medo da morte, tenho pena de morrer". Com esse mote, Francisco Anysio Paula Filho, o Chico Anysio, tornou autorizado o debate sobre os procedimentos médicos em torno de sua morte e a questão da autonomia e respeito à vontade soberana do moribundo.





A frase, dita em meio a uma entrevista logo depois que ele tinha se recuperado de 110 dias de internação, dos quais 78 em UTI, foi levada bastante a sério por médicos e familiares nos episódios clínicos seguintes. E não deveria?





Por um aspecto, eminentemente teórico, a assistência ao ator de 82 anos caracteriza uma prática obstinada de procedimentos distanásicos: uma terceira internação (22 de dezembro de 2011) com quadro clínico apresentando hemorragia digestiva seguida de pneumonia, falência renal e dependência tecnológica de ventilação mecânica, vindo de uma internação prolongada (110 dias em decorrência de dificuldade aguda respiratória culminando em uma angioplastia) e outra de 22 dias com infecção urinária, cuja alta foi revertida logo em seguida. O resultado, por mais desejado que não fosse, contradizia o esperado: parada cardiorrespiratória e falência múltipla
dos órgãos decorrente de choque séptico causado por infecção pulmonar.



Os médicos já sabiam de sua terminalidade, se não antes, no início de janeiro quando retiraram a ventilação mecânica e houve piora do quadro, submetendo-o a novos procedimentos invasivos e inúteis (lapartotomia exploradora para saber os motivos de sangramento intestinal) e hemodiálise. Esse quadro, graças às drogas, apresentou melhora ao custo de danos irreparáveis em seu sistema imunológico global, culminando em retorno da pneumonia e da dependência de ventilação mecânica, cuja consequência inevitável e iminente seria a morte.



Contudo, essa ciência não foi suficiente para afastar qualquer possibilidade menos invasiva e distanásica de tratamento. A insistência em manter os procedimentos abusivos foi reforçada e mantida até o final (especialmente as sessões de hemodiálise), quando, em 21 de março de 2012, o quadro clínico apresentava queda
da pressão arterial e falência dos rins, e na tarde de 23 de março, a morte.



Existem alternativas a esse paradigma assistencial, que segundo alguns é mantido por três elementos básicos:


  1. a subjetividade médica (o orgulho, a ideia de morte como fracasso, uma ideia equivocada de esperança e o paternalismo hipocrático);

  2. o despreparo acadêmico (muitos profissionais estão desatualizados nas questões éticas, humanistas e paliativistas); e,

  3. a empresa médica (esses procedimentos geram muitos lucros, não só sociais, mas especialmente econômicos)


Contudo, a composição teórica que apresenta esse quadro como uma prática distanásica pode encontrar algumas dificuldades, aos moldes da Bioética principialista norte-americana, especialmente quando encontramos uma manifestação explícita do paciente autorizando qualquer prática que lhe salve a vida.



Vejamos algumas razões que justificariam a distanásia que foi praticada em seu caso:




  1. O ator creditava à oração do povo o motivo de sua recuperação. Não tinha sido o trabalho da equipe médica, mas Deus quem o salvara. E esse não poderia fazê-lo novamente, em internações futuras? O mesmo povo que foi atendido uma vez, não poderia ser atendido novamente?

  2. O ator manifestou o desejo de viver até os 100 anos, pois isso satisfaria o sonho de ver os seus netos crescidos;

  3. O ator e seus familiares acreditavam em uma potencialidade médica de reverter o quadro clínico e prolongar a vida, bem como desejavam isso para si;

  4. O arrependimento pela escolha de ser fumante durante anos justificaria agora as ações terapêuticas para apagar um erro do passado;

  5. O ator declarava ter problemas psiquiátricos e que era acompanhado há 18 anos para cuidar de uma depressão, o que poderia ser agravado diante da informação de que era paciente terminal, sem possibilidades terapêuticas de cura e que morreria em breve.


A pergunta que colocamos é: essas foram mesmo as condições consideradas para se praticar o que foi feito ou estão apenas em um contexto de justificativa? O fato de um paciente manifestar certos desejos e vontades  distanásicos, bem como apresentar certos riscos psiquiátricos, são fortes o suficiente para não apresentarmos alternativas paliativistas? Devemos considerar tão soberana a sua vontade nesses casos, especialmente quando não a consideramos em outros? Foram dadas essas alternativas? Chegou-se a falar em cuidados paliativos para o ator e seus familiares?



Outras questões: o luto que a família do ator, e seus fãs, enfrentam agora, não poderia ter sido mais amenizado se houvesse uma fala mais honesta sobre a terminalidade dele? Essa forma de morte permitiu ao ator e seus familiares realizarem os seus rituais de despedidas? A morte do ator é uma consequência de uma escolha (ser fumante) e a forma de sua morte é uma consequência de suas crenças na medicina e em uma força salvífica sem limite, isso não pode agravar as reações ao "fracasso terapêutico" que era esperado?





As questões em torno da morte e do morrer não são as mais fáceis e não envolvem apenas subjetividades ou procedimentos técnicos; envolvem todas as industrias capitalistas existentes, das empresas médicas à indústria cultural. Afinal, o que seria melhor para um ícone da globo: definhar como um moribundo em sua casa ou morrer às escondidas em uma UTI?





para ler mais sobre Chico Anysio, acesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Chico_Anysio